Este texto faz parte de uma seria de trabalhos baseados em discursões filosóficas as quais objetivam proporcionar discursões necessárias para o entendimento de questões singulares para o aprendizado maçônico. Em nenhum momento se buscou ou buscará discutir os posicionamentos religiosos e a fé de cada um, pois estas questões fazem parte de suas individualidades.
Contudo faz necessário demonstrar que os antagonismos atribuídos às oficinas maçônicas, nasceram no ceio do cristianismo. Só cabendo aos pedreiros livres o uso da máxima de que os homens nascem livres e sem maculas que por si, determinem seu destino. Este trabalho, desta forma se restringe as discursões pertinentes às ocorridas entre os séculos II a IV d.c., e seus desdobramentos na Idade Média. Sendo sua vinculação aos dias atuais temerosa e passível de anacronismos.
O uso constante do refrão “Cada um pode se salvar em sua lei”, frase usada por Diego Hurtado, à primeira vista parece indicar que essa era uma interpretação corrente, uma maneira popular de compreender a variedade de credos no mundo. De fato, essa tinha sido uma questão central no início do cristianismo, e com a qual os teólogos da Igreja se defrontaram durante toda a Idade Média. Se Deus era onipotente e sua misericórdia podia redimir toda a humanidade, por mais pecaminosa que fosse, como se sustentaria o conceito de salvação apenas por meio da Igreja? Uma Divindade onipotente não podia salvar quem quisesse? Se a salvação só pudesse vir por Cristo e por sua Igreja, por outro lado, Deus estaria condenando deliberadamente muitas almas boas à danação eterna. E as crianças que morriam antes de serem batizadas, ou os homens e mulheres admiráveis da antiguidade, ou os que viviam em terras distantes e nunca tinham ouvido falar em Cristo? Os cristãos muitas vezes eram desafiados a explicar por que Deus demorara tanto para enviar seu Filho, assim condenando tantas gerações à danação eterna. Por que Deus criara tanta gente fora da Igreja? E a pergunta talvez mais inquietante: por que um Deus justo condenaria pessoas que mesmo vivendo fora da Igreja haviam levado uma vida boa e virtuosa segundo a lei natural que Ele concedeu a toda a humanidade? Como disse um Mourisco na Espanha “Deus não fez bem seu serviço fazendo uns Mouros, outros judeus e outros Cristãos”.
O Antigo e o Novo testamento não eram claros a esse respeito. Havia aquelas figuras – Abel, Noé, Daniel, Jó – que tinham vivido antes ou fora da aliança com Abarão, mas que foram justas e levaram uma vida que agradava a Deus. A retidão de Noé e a paciência de Jó também aparecem nas alusões do Novo Testamento como prefigurações da vida de Cristo. São Paulo, ao condenar os pecados dos pagãos em Romanos, 2:13-16, ainda reconhecia a possibilidade da graça divina às pessoas que viviam segundo a lei natural. O problema da salvação havia preocupado os primeiros pais da Igreja, Baseando-se no universalismo do Novo Testamento e em elementos como o Evangelho de São Mateus, que frisava a “espera das nações”, mas também reconhecendo a ênfase de São Paulo na salvação de todos em Cristo, as linhas de discursão e divergência eram claras, Já no século II, o pensador cristão São Justino Mártir tinha defendido a possibilidade de salvação para os que viveram antes da Igreja ou viviam fora dela, desde que se conduzissem de acordo com razão (logos) ou com a lei natural, que Cristo e a Igreja tinham vindo a representar mais tarde. De fato, tais pessoas eram cristãs na essência, se não na pratica, e assim podiam ser consideradas dentro da Igreja como conceito, e não como instituição, e capazes portanto de se salvar através dela.
Era um tema que seria posteriormente desenvolvido pelos teólogos com a distinção entre fazer parte da Igreja (in re), de fato, ou (in voto), na vontade tal como se expressava na intenção e na prática. Muitos dos primeiros pais da Igreja tinham feito declarações semelhantes. Mas havia também uma posição contraria e mais restritiva, apresentada, por exemplo, por São Cipriano, Bispo de Cartago do século III, que se tornou mártir, Cipriano argumentava que “como existe uma casa de Deus (…) não pode existir salvação para ninguém fora da Igreja”. Nem mesmo o martírio podia salvar os que estivessem separados da Igreja. Francis A. Sullivan, autor jesuíta moderno que discorreu sobre o tema, assinalou que muitas das primeiras declarações a tal respeito eram dirigidas contra os cismáticos cristãos, e não se destinavam a contradizer ou explicar a posição dos pagãos ou judeus, e que posição anterior mais abrangente foi substituída por uma posição teológica mais rígida depois que o cristianismo se tornou a religião oficial do estado no século IV. Tendo o cristianismo se transformado em religião oficial, o pressuposto era que todos podiam conhecer sua mensagem, e portanto os que permaneciam fora da Igreja não eram desinformados nem ignorantes e sim teimosos e recalcitrantes. Cristo tinha morrido também por eles, tinha cumprido sua parte no acordo, mas ao continuar fora da Igreja eles estavam rejeitando seu sacrifício, Autores como Santo Ambrósio e especialmente São João Crisóstomo adotaram posições muito duras contra os que, diante da verdade, faziam ouvidos moucos à palavra da Igreja. Segundo eles, Judeus e pagãos eram responsáveis pela própria ignorância e erro e, portanto, pela própria danação.
Como em tantos outros pontos de doutrina, foi santo Agostinho quem codificou as ideias existentes e, com sua análise, refinou a posição da Igreja. Ele aceitava a ideia de que alguns indivíduos particulares que viveram antes da mensagem de Cristo podiam encontrar a salvação, mas também concordava que, após sua vinda, a salvação só se daria dentro da Igreja. Agostinho argumentava que os povos que não conheciam a doutrina verdadeira estavam na ignorância porque Deus havia previsto que rejeitariam a verdade, mesmo se a conhecessem. Para Agostinho e interpretes posteriores que o seguiam de perto a grande senha passou a ser (extra Eclésia nulla salus), fora da Igreja não a salvação, formula que não existe no Novo Testamento mas que se tornou um conceito essencial ao Catolicismo.
Agostinho sustentava que a salvação era obtida pela graça de Deus, portanto concedida por Deus e não conquistada pelas ações dos homens, A salvação não era um prêmio que se ganha pelas ações praticadas, e sim um benefício outorgado por uma divindade onipresente. Grande parte do que Agostinho escreveu a esse respeito se dirigia contra Pelágio, professor e asceta que havia se estabelecido em Roma no final do século IV. Pelágio e seus seguidores defendiam que a humanidade era dotada de uma natureza essencialmente boa. Deus oferecia ao homem a escolha de praticar o bem ou o mal, e este mereceria a salvação apenas por meio das suas boas ações. Essa posição punha em questão o problema da graça divina e gerava uma controvérsia sobre o pecado original, a condenação das crianças não batizadas e uma série de outros assuntos de grande importância teológica. Pelagio e seguidores acabaram sendo denunciados por heresia, e na luta contra o pelagismo Agostinho aprofundou seus argumentos sobre a graça divina, a predestinação e o livre arbítrio. A doutrina agostiniana se tornou a posição oficial da Igreja, mas na verdade alguns problemas e incoerências continuaram sem solução. Se a única coisa necessária para a salvação era a graça qual o papel da Igreja?

Bibliografia

História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo: primeira etapa, período colonial / Eduardo Hornaert. (et al) – 5 ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2008.
Shwarts, Stuart B. Cada um em sua Lei: Tolerância religiosa e salvação no mundo Atlântico Ibérico – São Paulo – Cia. Das Letras, 2009.
Siqueira, Confissões da Bahia 1618 – 1620. 2º Ed. Coleção Videlicet, João Pessoa: Ideia, 2011.

Por Ir Khalil Augusto Botelho Nogueira